23 setembro 2007

A Espiritualidade na última etapa da vida

Espiritualidade
A ESPIRITUALIDADE NA ÚLTIMA ETAPA DA VIDA
Alba Payàs i Puigarnau

Acompanhar com compaixão é difícil porque requer a disposição de ir com os outros, ali onde se sentem débeis, vulneráveis, sós e feridos. O nosso maior dom é a habilidade de entrar com compaixão na dor daqueles que sofrem” (Henri Nouwen)

A autora deste artigo dá-nos uma visão sobre a espiritualidade na última etapa da vida e algumas orientações para os profissionais, para que em equipa, possam dar a atenção espiritual que esses doentes necessitam.

Todas as sociedades dispõem de uma variedade de crenças e ritos ao redor da morte para ajudar o doente e sua família a enfrentar esse experiência. Mas actualmente, esta perspectiva filosófica e até mesmo religiosa diante da morte ficou relegada pelo espectacular avanço da medicina e da ciência. Raramente morre-se em casa, morre-se com frequência nos hospitais, pelo que os profissionais de saúde deverão estar abertos a acompanhar e a apoiar os doentes em situação terminal e a atender às suas necessidades espirituais. A responsabilidade da atenção espiritual há-de ser partilhada entre todos os membros da equipa.

Para falar de acompanhamento espiritual a pessoas na última etapa da vida, é essencial, em primeiro lugar, entender a diferença entre religiosidade e espiritualidade. Quando falamos de religião referimo-nos a um conjunto de crenças que conformam uma visão do universo específica, com uma ordem superior que dá um significado concreto ao sentido da vida humana. Cada religião expressa esta visão particular do mundo e da vida do homem em relação com o seu criador através de uma série de rituais, filiações e normas éticas num marco de acontecimentos de referência. As necessidades religiosas das pessoas têm que ver com a expressão das suas crenças, a relação com o seu Deus, o uso de orações e os actos rituais de comunicação à volta de certos símbolos e objectos de culto, os sentimentos partilhados com os outros membros da comunidade, a celebração do sentido da comunidade e a responsabilidade de cada um.

Ao referirmo-nos à espiritualidade entendemo-lo como experiência muito mais pessoal e intima que pode ou não ser expressa dentro de uma religiosidade. A espiritualidade pertence ao domínio interior do homem e à sua consciência ou percepção de si mesmo no mundo. À espiritualidade chega-se a partir da experiência e conexão pessoal interior com o âmbito íntimo. A espiritualidade tem a ver também com a aceitação daquilo que é irracional: a existência de um ser superior, essência, ordem suprema. Algo que nós não podemos entender nem controlar e que desafia à lógica, mas do que podemos participar de alguma maneira e que pode dar significado à nossa existência.

Quando a pessoa enfrenta a própria mortalidade, a dinâmica espiritual aparece como um intento de busca interior.

A relação de ajuda no acompanhamento espiritual está baseada em duas atitudes: o absoluto respeito pelo caminho da própria pessoa e a atitude de interrogação.

É necessário partir de uma situação de nudez: de não ter mapas que sirvam. O cuidador nunca pode impor o seu mapa pessoal. Entramos num terreno de que só a própria pessoa pode fazer a sua cartografia. Para conseguir isto devemos manter uma atitude de interrogação. Não conhecemos o mundo do interior da pessoa e o nosso trabalho é acompanhar, e dar luz e muito espaço para que a pessoa possa fazer o seu trabalho. As perguntas são o instrumento que permite à pessoa conectar consigo mesmo, com os seus sentimentos, crenças, esperanças. As boas perguntas ajudam a focalizar no processo de exploração pessoal. Acompanhamos fazendo perguntas explícitas ou implícitas (um silêncio é muitas vezes uma boa pergunta) que ajudem a pessoa na sua viagem de descoberta pessoal.

Muitas vezes quem enfrenta a morte pergunta-nos sobre questões como o sentido do sofrimento ou a possibilidade de vida depois da vida, entre outras. Quando nos fazem perguntas sobre preocupações espirituais, na realidade não esperam que lhes demos resposta e se a damos, seguramente não a escutam ou não lhes servirá. Como refere Brady (1979) perguntam-nos como uma forma para promover a conversa que os ajude a articular os seus próprios pensamentos e a sua luta interior. Fazem-no desde uma necessidade de nos explicar algo muito pessoal: partilhar a sua própria história.

Necessidades espirituais na última etapa da vida:
Importa salientar, na perspectiva da autora, quais são as preocupações espirituais mais frequentemente expressas:
Encontrar sentido, significado na própria vida
Diante da consciência da própria mortalidade, desperta-se para uma profunda revisão de vida que permite à pessoa entender e encontrar um significado e um propósito para a própria existência. Um indivíduo que se situa perante a morte pergunta-se sobre o seu passado, o presente e o futuro: porque estou doente? Que sentido tem a minha doença agora, neste momento da minha vida? Que sentido tem a dor e o sofrimento que tenho de viver? Também esta procura toma uma dimensão de integração do passado: que sentido teve a minha vida? Se agora tenho de morrer, vale a pena? Quem sou eu? Qual foi o meu papel na vida? Para assistir o doente nestas perguntas, é útil animá-lo a que faça uma revisão da sua vida, colocando a atenção nos acontecimentos mais significativos: coisas que fez, sucessos que se apresentaram ou a parte da história que lhe coube viver, podem ser áreas de exploração. Ajudar a identificar os frutos de cada etapa: o significado não se inventa: é necessário ajudar a descobri-lo. Muitas vezes o sentido profundo encontra-se em acontecimentos muito simples, onde existiram sentimentos especiais de amor ou de dor, simples encontros entre pessoas que se querem, que desfrutam da vida ou da relação ou que fazem algo criativo. A necessidade de resolver lutos passados não elaborados também emerge frequentemente quando as pessoas enfrentam a morte. O trabalho de reconstruir um significado em relação às perdas do passado é um dos temas centrais do luto (Neimeyer, 1997). Nem todas as perdas supõem uma ameaça aos construtores de significado: de facto, algumas possivelmente os reforçam. Mas na última etapa da vida, podem aparecer assuntos pendentes não resolvidos que supõem uma fonte de sofrimento se não resolvidos adequadamente.

Querer e sentir-se querido até ao final da vida
O doente, e muito especialmente o que enfrenta a morte, vive a ameaça da ruptura de suas relações com os outros, com os entes queridos, mas também consigo mesmo. A necessidade básica de todo o ser humano é a de querer e ser querido, e sentir a sua conexão até ao final da sua vida. A última etapa da sua vida é uma oportunidade de celebração e aprofundamento dos vínculos mais importantes da vida da pessoa e também uma oportunidade de restabelecer aqueles que estavam desfeitos e que antes de morrer a pessoa deseja resolver. Muitas vezes, necessita completar as relações do passado, resolver os assuntos pendentes e viver o que fica de tempo com relações mais significativas. O trabalho de resolução de pendentes inclui o trabalho de perdão, a expressão de gratidão e de afecto. Neste mesmo sentido Kornfield fala-nos de que diante da morte só há duas questões importantes: amei bem? Fui querido?
Sentido de esperança e/ou transcendência

Encontrar um sentido para a própria vida relaciona-se com outra necessidade: o anelo de um nível de transcendência. As pessoas religiosas podem ter necessidade de aprofundar a sua relação com Deus através de orações, sacramentos ou outras expressões rituais. Para esses o conforto está na certeza do reencontro com Jesus, ou Atman, ou Tão e têm a esperança religiosa de ser perdoados, ou de chegar à iluminação. Para outro, a esperança pode-se encontrar no sentimento de uma vida completa, o regresso à natureza e à participação no sentido da vida, a perpetuação através da família, o legado artístico ou criativo, a contribuição social ou intelectual à comunidade ou ao viver na recordação dos seres queridos.

Neste processo de exploração e procura de significado há actividades que podem resultar muito úteis: capacidade de estabelecer uma relação de confiança: escuta paciente, respeitosa, cálida. Muitas vezes, tudo o que nos pede é que estejamos presentes como testemunhas silenciosas da sua dor. Também podemos ajudar-nos com pequenas actividades como a reminiscência, fotografias, pinturas significativas, objectos queridos, música preferida, criar símbolos ou ritos, meditações guiadas, a prática do silêncio, a expressão emocional, a escrita criativa.

Conclusão:
“Acompanhar os outros não é dar-lhes os teus valores
Se não revelar-lhes os seus valores
Os seus dons, as suas forças,
E confiar neles e na sua capacidade de crescer.” (Jean Vanier)

Paula Carneiro
(Enf.ª Coordenadora da Unidade de Cuidados Paliativos S. Bento de Meni, IHSCJ, Casa de Saúde da Idanha)

Publicado em www.apcp.com.pt

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