25 junho 2007

Coisas da Vida

Vontade de morrer?

Todas as pessoas têm medo do sofrimento na doença, todos tememos a dependência física e todos olhamos com pavor para os corredores de doentes terminais nos hospitais mas estes nossos pavores e temores não podem ser o único critério para avaliar uma questão tão radical como a eutanásia.


Ninguém quer agonizar eternamente numa cama de hospital nem ninguém sonha com um fim de vida de solidão e dor. Acontece que muitos ainda desconhecem que há técnicas para intervir e reduzir substantivamente esse sofrimento. Para uns a eutanásia pode parecer a "solução ideal" que vem resolver o sofrimento terminal no mundo mas, para mim, existem soluções infinitamente mais humanas e humanizantes. Falo de cuidados paliativos, realidade em que acredito profundamente e me impede de aceitar a eutanásia como uma boa forma de morrer.

Sabemos que a esmagadora maioria das pessoas doentes não quer morrer se não estiver em sofrimento. Há incontáveis estudos científicos que provam esta afirmação e, nesta lógica, todas as pessoas deviam ter direito a cuidados técnicos e humanizados, coisa que em Portugal não acontece senão a uma ínfima percentagem de doentes. Apenas 8 por cento tem acesso aos cuidados paliativos e, em minha opinião, este devia ser o centro de uma discussão muito anterior a qualquer debate sobre a eutanásia.

A forma como tratamos os mais vulneráveis e os mais dependentes diz muito sobre o estádio de desenvolvimento da nossa sociedade.

Numa era de triunfalismo médico, em que a cura é endeusada e a não cura é olhada como uma derrota, um falhanço médico ou uma coisa menor, vale a pena perceber o que está em causa quando se fala de vida e de morte, de sofrimento terminal, de eutanásia, de encarniçamento terapêutico e por aí adiante. Acima de tudo, insisto, vale a pena debater amplamente a urgência dos cuidados em fim de vida.

Medicina triunfalista

Importa perceber que o primeiro e último objectivo da medicina é o não-abandono. Ao contrário do que muitos pensam (alguns profissionais de saúde incluídos) o fim da medicina não é a cura, como erradamente se faz crer. A obstinação terapêutica de alguns médicos e a persistência numa vida sem qualidade, artificialmente mantida, é reveladora de uma atitude que se convencionou classificar como uma forma de medicina triunfalista. Ou seja, médicos que agem como se os doentes tivessem que ser mantidos vivos a qualquer custo, condenando-os muitas vezes a grandes sofrimentos (dos próprios e das suas famílias, note-se) através da dita obstinação terapêutica que decorre, entre muitas outras coisas, de uma incapacidade de aceitar a morte ou a não-cura. Como se houvesse uma espécie de supremacia absoluta da Ciência.

Diz quem sabe e quem estudou toda esta questão, que um médico que não foi treinado nem preparado para aceitar a impossibilidade de cura, tem dificuldades em lidar com o sofrimento dos que sofrem e distancia-se por não saber partilhar a vulnerabilidade do outro (nem a sua própria vulnerabilidade, conquista porventura ainda mais difícil) e pode ter tendência para se refugiar em medidas heróicas e agressivas que, longe de proporcionarem conforto, trazem ainda mais sofrimento ao doente.

Médicos paternalistas?

Os médicos persistem com grande frequência num modelo de relação

paternalista, por assim dizer, achando que podem decidir pelo doente, não o informando, não o acompanhando, mentindo, omitindo e não esclarecendo sobre o seu direito à recusa de tratamentos fúteis e desproporcionados. Por outro lado, insistem misteriosamente em não informar os seus doentes sobre as alternativas que existem para diminuir o sofrimento nas suas diferentes vertentes: física, psicológica, emocional, existencial e outras.

Talvez estes médicos confundam a aceitação da inevitabilidade da morte dos seus doentes com baixar os braços, perder uma batalha pessoal ou passar a viver do lado errado da sua vida profissional. Do lado dos derrotados ou dos médicos sem remédio, quero dizer.

Sinceramente perturba-me a atitude e inquieta-me a ignorância, seja dos médicos ou dos doentes. Pergunto-me se não haverá quem ajude estes médicos e profissionais de saúde que escondem realidades libertadoras a perceber que é um erro mentir ou omitir. E é um abuso subavaliar as capacidades e as potencialidades das pessoas doentes, só porque estão doentes, frágeis e em desvantagem científica, digamos assim.

Matar o sofrimento?

Posto isto e tudo aquilo que tem vindo a ser debatido publicamente nesta semana a propósito das conclusões de um estudo feito por um investigador da Unidade de Cuidados Intensivos do Instituto de Oncologia do Porto, que revela que 24% dos médicos oncologistas fariam eutanásia, pergunto a quem interessa o debate sistemático e forçado da eutanásia numa sociedade que precisa de fazer muito trabalho e investir muito dinheiro para melhorar a qualidade de vida das pessoas antes de apostar em lhes dar um fim aparentemente rápido e asséptico?

A eutanásia é e será sempre uma forma de matar o sofrimento, matando quem sofre. Pode resolver a questão desta ou daquela pessoa em particular mas não resolve a grande questão do sofrimento terminal que, essa sim, merece ser aprofundada e debatida no sentido de encontrar soluções menos radicais. Mais humanas e humanizantes,lá está.

Ora o que todos sabemos, por ciência e experiência das unidades de cuidados paliativos que se multiplicam num mundo cada vez mais consciente do seu valor, é que há outras maneiras de resolver a dolorosa questão do sofrimento físico, moral e emocional.

Pergunto, finalmente, (hoje é dia de infinitas perguntas mas a questão merece estas e outras interrogações) a quem interessa realmente discutir uma solução que é universalmente aceite como situação de excepção, em vez de discutir a situação de milhares de doentes e suas famílias, que não querem sofrer mas também não querem morrer sem ser por morte natural.

Porque se trata de uma questão fracturante, delicada e povoada de mistérios e inquietações, proponho que em vez de começarmos pelo fim, a debater a eutanásia, se promova um verdadeiro debate sobre a dignidade no fim de vida. Um debate esclarecedor e transformador.

Antes de falar em pôr termo à vida, vale a pena falar sobre o sentido da vida e vale a pena formar os médicos e profissionais de saúde nesta área do sofrimento em fim de vida, seja nas faculdades ou nos

internatos médicos. Manter este treino ou este ensino apenas em duas faculdades, a título de excepção ou como se fosse uma opção menor, faz-nos menores.

Laurinda Alves in Publico

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigada Laurinda Alves pelas palavras de humanidade que sempre a definiram.
O seu artigo fez-me reflectir sobre um assunto tão denso para a sociedade e para mim.
Sinto falta de a ler! saudades da XIS.
Esta caminhada pela vida obriga-nos a pensar na nossa propria, no dia a dia. Um bem haja por este blog.

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